II
Pelos trilhos do ressentimento
-----É de suster o folgo, à perda da inocência, da candura com que se via o mundo, da simplicidade ao se ter um futuro certo. Uma extrema sensação, até então desconhecida, escondida num dos tantos espaços vazios entre a lógica e o sentimento, emerge dos recônditos que fazem parte do ser. Germina raízes, conquistando os lugares que têm pertencido aos sonhos, aos idílios da inconsciência de que o mundo é tão cruel. Passa a duvidar do que sempre lhe pareceu certo, da lógica das flores, da utilidade das melodias para piano com que tinha crescido, da absurda ideia que o universo é infinito, da coerência do tempo, sim porque este é o grande culpado, se fosse possível suspender um momento perfeito para todo o sempre, permanecer parado, a contemplar toda uma essência, toda a beleza que de tão sublime até dói… Mas a realidade passa a habitar a sua fragrância o seu alento, a chama de outrora que se entregava por completo à agitação do misterioso, ao encanto reservado das pequenas coisas que a deixavam feliz. E tudo lhe parece insuportável, os lamentos das amigas irritantes, os sorrisos banais de cumprimento matinal da mais perversa simpatia, a insípida rotina familiar uma pesarosa melancolia.
-----A cicatriz está gravada ao espelho, à passagem de rostos que o enredo teima em colocar diante de si – Sim Ana, continuas a ser a minha boleia para a faculdade, esta dor não transcende a aversão a apanhar dois autocarros logo ao acordar. Também só falta uma mês, depois já podeis estar juntos, sem me terdes por perto a fazer juízos. – Tinham sido mútuas confidentes, desde que se escolheram no primeiro dia como caloiras, passaram juntas aquele momento na vida universitária onde se duvida da escolha do curso, partilharam noites de estudo, prazos de entrega à última da hora, a companhia dos bares, que revigoravam o alento depois de uma semana de aulas, e os planos para o que o futuro lhes reservava. Agora as bases em que se moldava a relação, vislumbram o desmoronar, o ruir do conforto, nas confidências que sabiam suas. Retraídas ao silêncio, que inundava o automóvel, mediam as possibilidades de não serem motivos para o fim.
– Queres falar comigo sobre o assunto?
– Falar p’ra quê!.
– Dividir com alguém o que sentimos, investe-nos de uma sensação de liberdade, divide o peso que carregamos.
– O que há para libertar? As coisas são o que são.
-----Abriu um caderno e escreveu, palavras vazias, sem destino algum, somente para se mostrar ocupada, longe da oportunidade de voltarem a conversar. Tudo o que queria era discutir sobe um torrencial de poluição sonora, declarar a eterna inimizade bater com a porta do carro, com sorte partir um vidro, apagar o número do telemóvel e eliminar todas as fotografias.
– Logo queres que espere por ti?
– Acho melhor não. E amanhã venho de transportes públicos.
– Não precisas de fazer isso.
– Nem imaginas o que preciso.
-----Não compreendia o que se passava consigo, nem se reconhecia, espalhavam-se ideias pela cabeça, que nunca julgou suas. Via acontecer nos que a rodeavam, mas não esperava que essa também fosse a sua sina. – E é isto que esteve guardado para mim? Toda uma infância à espera de crescer, para vir encontrar isto? Se me tivessem dito o significado de ser adulto, jamais teria ficado todas aqueles momentos a observar o horizonte e a ansiar ser igual àqueles seres cheios de liberdade, que podiam fazer tudo o que quisessem e escolher ser quem quisessem. Se soubesse teria preferido ficar pequena, protegida no desconhecido, de que existia algo além de passar o dia a brincar. E era feio e mau, e era o vilão das histórias, sim porque nunca ninguém nos diz que a única parte real das histórias que contam ao deitar, é que o lobo mau existe mesmo, e que nunca ninguém veio salvar a princesa da torre alta. Não sei para quê que nos enchem de ilusões… Que nervos, preciso de falar, preciso de gritar, e não tem ninguém para ouvir. Porquê que tinha de acontecer logo desta maneira? Mas porquê? Eram o meu mundo, e agora não tenho nada, ninguém, quero berrar a minha frustração, só que estou sem um ombro para me escutar. Pode ser que a rotina do estágio me faça bem, já estou cansada, não me apetece mais pensar.
-----Com o decorrer do mês Inês tornou-se mais reservada, já não saía com ninguém para se divertir, ou esboçava os sorrisos que lhe eram tão comuns. Terminou o curso, não quis nenhuma celebração, recebeu o diploma com um grupo de outros vinte e seis alunos finalistas, entre eles estava o Paulo, e a Ana, e a proximidade que os colocava a todos no mesmo espaço durante todo o dia, deixou-a de tal modo perturbada, que, nas semanas que se seguiram, refugiou-se à solidão. Evitava dar importância às coisas, mas não se conseguia impedir. Fora chamada para trabalhar na sua primeira opção, mas nem isso a deixava feliz. Tenta preencher o tempo, fazendo planos, preparar-se para viver, mas o seu coração estava ferido, e continuava a procurar sentido nas coisas que já não o têm. – Ele ama-a, porque existe um fundo de compatibilidade entre nós, na verdade ainda me ama a mim, mesmo sabendo que não me envolve nos seus braços, nunca lhe será indolor a lembrança da minha presença. Sim acabou, está visto, já desapareci passaste-me para segundo plano, ainda tiveste cuidado em não andares juntos perto de mim, mas agora não são os meus olhares que se cruzam com os teus, não é das minhas mensagens que esboças um sorriso e não é por mim que aguardas ao fim do dia. O ritmo incansável, que à medida que me aproximava de ti batia cada vez mais forte, está a perder intensidade, e digo-te adeus. Ainda bem que o trabalho me leva a sair de casa, vou morar para longe, tão longe que a distância seja a suficiente para deixar de estar a pensar sempre em nós. – A ideia de partir antagonizava-a, no entanto sentia a ânsia de fugir de romper com a névoa escura que se abateu nos seus dias, e esta era a sua oportunidade, distanciada de tudo, longe de todos os que faziam parte de tão complexa equação, já sem solução à vista. Não sabe que rumo a espera, mas sabe que precisa de espaço, de um novo palco em que o ensaio sobre a vida passa a decorrer.
-----Não foi fácil arranjar um apartamento para ficar. Ainda se sentia muito fragilizada e não queria estar o tempo todo só. No local onde passava a trabalhar, os colegas já estavam todos instalados ou com família. Finalmente apareceu um espaço para alugar mesmo à beira do atelier e rendeu-se a ter a sua primeira habitação, a sua primeira renda, a sua primeira garagem para o carro, e as suas contas para pagar. Tudo parecia tão real, estava mesmo a tornar-se adulta, era um misto de desconhecido, ventura e contrariedade. Não se queria desprender do que sabia seguro, largar os amparos e deixar-se fluir com a corrente, não sabia onde a ia levar, e se a esperavam intempéries, dilúvios que não queria seus! A alvorada era sombria, intimidante, assustadora, e ela caminhava na sua direcção, rumo ao seio que o desígnio parece colocar na sua frente.
-----A luz foi-se apagando e dando aconchego ao cansaço que todas as bravias descobertas traziam consigo, o dia não era mais dia e a noite caiu cerrando as suas novas janelas sobre a cidade. Ainda não tinha água ou luz, mas a ausência de claridade não a decidiu a dormir, ainda se deitou num insucesso de sono, levantou e caminhou o escuro das divisões vazias, explorando, tacteando onde tinha deixado as garrafas de água, em que deleitou a sede. Estava só. De costas no chão na sala sem nada, esfriava o corpo na tijoleira mantendo-se desperta, cerrar os olhos parecia-lhe ingrato demais, estava no início do primeiro dia e não queria perder um único momento. Eram novas memórias, a tomar lugar no álbum de recortes que virava uma página mais. Estava impressionada consigo mesmo, tantas coisas a acontecer e ela sozinha a enfrentar tudo. Um calafrio encolheu-a num abraço que juntava os joelhos ao peito. Voltou a explorar com o olhar o imenso escuro que a rodeava. Estava só. Sentia-se só. E chorou. Não procurou um local reservado como o seu quarto, ou um canto da casa, agora eram todos locais para acolher os seus humores, ninguém a veria, ninguém sentiria a sua falta nos instantes em que se permite libertar em lágrimas a emoção que transborda o delicado corpo. Não ficou impressionada por ter chorado, não ficou com medo, não sentiu a necessidade que a viessem resgatar, estendeu-se na cama, envolveu os ombros com o cobertor e adormeceu.
-----Queria iniciar tarefas, com um sorriso no rosto, só que se sentia tremendamente incerta. Via o prazer com que os arquitectos, que passavam a ser os seus colegas de trabalho, dedicavam aos projectos, todo um desejo de criar algo novo, que não se conseguia fazer sentir. Desejava gostar do que fazia, com características de empenho, determinação, ousadia do inovar, mas não sentia vontade de nada. Perde-se em pensamentos, devaneios acordados, segundos, momentos, e a lembrança volta a si, da demora dissipada em imaginárias possibilidades, do decorrer dos dias que passam no mundo daqueles que deixou para trás, que conhece, que deixa de conhecer – Será que pensam em mim? Não dizem nada, não partilham nada, continuam a vida tranquilos, sem que eu faça parte dela. O silêncio é diferente... já nem existo, não faz sentido terem-me presente, lembram-se, uma vez por outra, de me referir, só para cumprirem a etiqueta do já fiz a minha parte! – Dói, este resumir ao suspiro, o que esperava que o futuro reservava.
-----Pela manhã, os aguaceiros intensificam o desespero, o silêncio ensurdecedor, de se ver a ocupar todo o espaço sem ninguém por companhia, do contar interminável da passagem do tempo, em transcendências de discurso consigo mesma, do pesar do ânimo que se difunde nas bermas da calçada, diluindo o sorriso que até então todos reconheciam, como parte do seu encanto. Evita os contactos do cruzar a praça em movimento, ou só permanece o tempo necessário, ao cumprimento motor de quem lhe disse “bom dia” junto ao aroma do café que ilude o não ter dormido as horas suficientes que recompõem o alento.
-----Nota o ar arrefecido, de uma janela aberta sobre o estirador. Ansiava vestir o casaco, só que estavam todos com um à vontade de trabalho, aquecidos pela motivação de estarem quase a terminar, três meses de trabalho, investidos num condomínio fechado. Ainda não se sentia inserida, e mantinha-se discreta a um canto, como uma peça de mobília, que aparece só quando é precisa. Faltavam-lhe palavras, comentários que fossem uma mais valia, e trouxessem elogios, que se anseiam num primeiro dia do emprego, no entanto, reservava-se a umas quantas linhas, para demonstrar que dominava o software informático.
– Então Inês! O que acha?
– Está muito interessante. A maquete também foi feita cá?
– Não, isso mandamos fazer. E agora, ajudar nestas pequenas coisas, passa também a ser o seu trabalho. É sempre preciso fazer alguns reparos, e os cuidados manuais recaem sobre os estagiários.
– Já estou a ver, que tão cedo, não vou projectar nada a sério.
– Claro que vai. Mas tem primeiro de demonstrar o seu valor. Um passo de cada vez. Aprender as bases, para depois poder ter domínio no resto. É como construir uma habitação sem fundações, vem tudo abaixo. Vocês saem da universidade a pensar que são arquitectos, mas são é ainda aprendizes de feiticeiros. Falta a parte prática, a ciência de ter projectos reais, com todas as complicações extenuantes, que só nos libertamos quando a casa está pronta, e mesmo assim…
– Pois, falta mesmo a experiência. Durante o estágio, já preencho essa lacuna.
– Ficarei feliz se assim for. Olhe, aproveite e vá com o Arqtº Ricardo, que ele vai passar na câmara e fica já a saber, como se dá entrada de um projecto, para aprovação no departamento de urbanismo.
-----Não sabia os nomes das pessoas, e andou breves momentos a tentar encontrar a face que se identificasse que se identifica-se por si só. Ao canto direito, estavam expostos alguns trabalhos já realizados, onde uma mulher procurava lugar para a nova aquisição – Arqtª Cristina – com ar circunspecto, de quem demorou o seu tempo a vingar no território deveras masculino da construção. À esquerda, dois estiradores, um, não sabia de quem era, o outro dizia, num dos rolos cuidadosamente arrumado, R. Meireles. Jovem, disperso, debruçado sobre as folhas, com os óculos a delinearem a expressão atenta do pleno interesse contido com os seus pensamentos.
– Bom dia, o Sr. Favião disse-me que o acompanhasse na ida à Câmara.
– Olá Inês, dê-me só dois minutos que já vamos. Organize essas folhas por números, e coloque dentro da capa por ordem de cores. É só acabar de plotar esta planta e dobrar. Já sabe dobrar uma A1 não sabe?
– Sim, deixe estar que eu faço.
– Ok. Se tudo correr bem, fica pronto hoje.
– A esta hora, nos serviços municipais, não estão todos a almoçar?
– Fecha à uma e meia. Ainda vamos a tempo.
-----Achou uma libertação momentânea, ao ocupar-se dos documentos, da burocracia, e a ser finalmente inserida, no tão esperado seio, onde as pessoas a tratavam por Sr.ª Arquitecta. Só que olhava para tudo de forma alheia, ciente do modo de agir, como quem não faz parte da tela, e presta atenção a todas as minúcias, todas as pinceladas, que o artista por indiferença deixou ficar. Sabia-se distante, que a desconheciam por completo, às suas fantasias, às suas reflexões, à sua íntima voz, que não demonstra, e se mantém suspensa, na esperança que um dia alguém a veja, através do ténue véu que coloca entre si e as constantes novas relações que atravessam o rumo das possibilidades. E essas confidências não os façam a todos desertar, pela intimidante complexidade do que lhe vai na cabeça.
-----Voltava àquela infância perdida em que se demorava em todos os pormenores, na razão de ser das coisas, a sua essência inquiridora e pensadora acolhia uma vez mais maior vislumbre sobre a vida. Já se tinha esquecido daquele seu humor absorvido submerso suspenso, que fazia parte da transição para a universidade, onde as coisas lhe correram felizes. Amava a vida, os amigos, e deixou de pensar. Sentia-se livre por andar enamorada e ser correspondida o tempo todo. E esquecia-se daquele tempo cruel de ser adolescente e ultrapassar o secundário tão assustador, cheio de dúvidas, incertezas existenciais, processos contínuos por se definir. Agora, desperta uma vez mais para o real, o ilusão de estar apaixonada cai e volta a clarear a razão, a viver contando os segundos, tristes, malogradas, sentidos de dor, insatisfeita e angustiada, e nada a alegrou, naquela intensidade imensa de trabalho, que lhe deveria trazer de volta o propósito, ao encantamento de acolher em si o viver, o contacto com os que a rodeiam. Faltava-lhe o discurso, as visitas sentidas, o desaprovar familiar que lhe era o norte, faltava-lhe a proximidade, que deixou de ser partilhada consigo. Fazia por não exteriorizar esse mal que a consumia, que a retraía a esse espaço inútil, de indisposição, mal-estar psicológico e medo que não a deixavam só. Via germinar uma personalidade, ainda indefinível, e não sabia se a queria sua, ou se lha estavam a impor ou se era inevitável. Mas deixava-se seguir, na indolência de um deserto, que a cedeu cansada demais para lhe fazer frente. Parada, presa em torno de uma história que a impossibilitava de viver, de ser mais e perceber-se respirar, encher o alento do reviver do respirar pulmões de ar puro. Mas só inalava suspiros de fôlego inerte, deixado à decomposição, à consciência inanimada, incapaz de reagir à enclausura em que se sentia, incapaz, mergulhada nas alturas da contemplação cega da profundidade vazia. Do querer ser, e continuar a ser nada, de sofrer a ânsia do desígnio e vislumbrar mais do que tudo isto, este laborar um horário fixo, que parece a sua inefável sina, igual aos outros todos que vagueiam os dias, melindrados ao mais pequeno desvio, já rendidos à ausência do sonho, da inocência, a fazer parte da mundanidade completamente áril do brotar da esperança. Sente um aperto, uma vontade de gritar, desprender-se da ofegante penumbra do irradiar enraivecido da desolação. Cada passo é a demanda de um impulso, que anteceda o evadir da sensação que a atingiu, do cessar do silêncio, a procura de um vigor que na intimidade a acolha, na cumplicidade de quem estabelece uma relação, livre de juízos, livre de malícia, livre o suficiente para simplesmente procurar o corresponder da afeição, naquela inocência que com o crescer desapareceu. Não é que o seu percurso até então, fosse por demais fantástico, sempre teve dúvidas em relação a uma imensidão de coisas, mas agora é que não sabia o que fazer, estava perdida, sentia-se perdida, não sabia o que o amanhã lhe reservava e só queria esquecer. Sim isso, só queria esquecer aquilo tudo, se pudesse arranjar maneira de esquecer...
-----A intensidade do seu calor bate fortemente. O desânimo expande o aparente sossego, ensurdecedor, o aperceber-se do passar de cada segundo, dos momentos difíceis que se entranham no permanecer, ocupando o lugar que deveria pertencer ao abraço ao contacto que se quer num aperto de aconchego e afecto, reflexo de que se está a ser amada a ser acolhida por outra pessoa, que colmata o asinino do tempo que gasta a martirizar a própria mente em divagações de humores, lamentos de desamparo, agora longe de casa longe de todos os que conhecia, não tinha ninguém para a acolher na frustração que aumentava. – Que nervos! – Tinha de criar novas amizades, ou algo que a revivesse, detestava estar assim, à certeza desta vida incerta que lhe murmura azedume de irritação e insensatez.
-----Caminha o percurso de volta ao apartamento, e é despertada para o fundo da pequena atrofiada viela, onde luzia o esquecer de perdição. Um anjo negro de asas púrpuras irrompe das suas preces, contorcendo fingindo acolhimento. Em luzes ofuscantes pede a sua presença, “Angélico’s Café Bar (aberto até as 2h)”. Parecia-lhe ouvir flutuar, entre o denso nevoeiro, vozes ruminantes que a impeliam a entrar. Um espectro acerca-se da saída e transpõe a estrada, deixando o interior desolado, entrou, na vaga do desejo da miragem pela crisálida agonizante que incita o romper do respirar, que aquece as labaredas resolutas, da intrepidez que se apoderou da sua incerteza. O espaço estava numa segunda-feira vazia com uma mulher sozinha a atender. Encostou-se a um canto e numa coragem que lhe era estranha pediu:
– Algo para esquecer.
– Correu mal o dia?
(Inês estava expressiva) – Só me quero libertar da lacuna de não ter melhor amiga, de não saber o que fazer, de detestar cada momento.
– Um cheio então.
-----Porque esta noite precisava de abstrair-se de sentir, de pensar. De fugir da realidade e voltar para o local que lhe devolve a paz. Entre o desamparo a amargura e a noite, procura encontrar a solução, a amarga resposta que lhe sirva de guia, que lhe indique o que fazer.
-----Libertava-se das apreensões ao calor da ardente sede que a mantinha em estado desorientado e estranhamente feliz. Extinguiu-se noite dentro até que a senhora, com formas estranhas, disse que ia fechar. Em vão buscava a orientação, nas distantes e inquietas ruas, que a levasse à exaustão total de uma cama, e completasse o enquadramento que faltava a toda a perspectiva a que acabou por ceder. A música tocava ao longe e enquanto caminhava dançava ao som de uma batida irreconhecível, dispersa da noção da realidade falava só com seres estranhos por companhia – Dança comigo. Vá lá, não tenhas vergonha. Só estamos aqui nós, põe as mãos em torno de mim. Isso, não me pises, estou a brincar, não fujas, vamos dançar, vamos dançar sempre. Olha p’ra mim. – E continuava chocalhando as poças de água que lhe colhiam o caminhar. Não precisava da timidez, para sentir o espanto paralisante do que estava a fazer, não tinha noção do risco na hora tardia, não via perigo nos ruídos que a escuridão coaxava, queria o corpo imerso em lama, os poros invadidos da total transe que a luz brilhante e brisa calma punham diante de si. Ah tormentos! Ah máculas! que sois os culpados da decidida noção de se deixar seduzir, na singular obscura candidez, de quem pela primeira vez, desiste da curva do correcto destino e acolhe a escuridão como porto de abrigo. Perdeu-se no escuro sem espinhos, nas folhas não ásperas que adornavam a alienação em que caiu. E sorria outra vez, sorria com as lágrimas escorrendo pela face em felicidade plena, prenúncio do resplandecente alvorecer que o peso da leviana noite irá trazer.
-----Vestida sobre o cobertor, em forma que o corpo expõe a total sensualidade das roupas mal-formadas, liberta das amarras das alças, que descobriam os ombros, as graciosas costas, escondidas sobre as roupas que teimava em usar para não demonstrar a sua natureza latente, como a borboleta que se mantém tempo em demasia no casulo. O emaranhado dos cabelos cobriam-lhe a face das marcas dos lençóis, do travesseiro, da contínua posição em que a noite na madrugada decidiu ficar, e até ao alvorecer permaneceu. Um rosto espesso, coalhado do sofrimento que o pescoço tecia. Movendo-se ligeiramente, acordando na dor lancinante dos músculos doridos, que nem sabiam o que lhe tinha acontecido. A bolsa espalhava o seu conteúdo sobre a cama, na desintimidade da abertura que o álcool trás. O pé direito a descoberto conheceu o frio constante da noite e estava alvo de irritabilidade, arremasado ao esquecimento e invejoso da haste esquerda ter permanecido coberta com o calçado. Começou a despertar para a brisa húmida do prenúncio do bater da chuva na vidraça, que move ao sino do despertador natural, em que o agressivo som da cidade invade o silêncio do mundo meu sem pedir. Ao levantar-se, estonteou à dor atrofiada que o pé lhe deu, no gélido cruel em que a madeira glacial reacende o despertar. A face avelada, esboçava um avivar ciente, num indício de que não era o amanhecer habitual. Percorreu a memória com as mãos, penteando os finos cabelos que teimavam não correr. Despiu o aperto de roupas, e tombou exausta sobre um avistar do tecto em círculos de dores de cabeça, que relembra do estudo extenuante dos exames. Espirrou o frio tolhido, do piso desprovido de um tapete, corroeu o jejum no estômago que o sabor amargo reclamou em ruidoso desdém. Moveu-se rastejante, até à banheira, que se esperava friíssima do gás que ainda não comprou. A quantidade luminosa excessiva transbordante, da medida única que fluía do chuveiro era insuportável. Em frente ao grande espelho, escorria a água do dorso sobre o chão, vacilando de frio a delgadeza do corpo a descoberto, e deparou-se com o nada, a lembrança nula do que lhe tinha sucedido. Com expressões de surpresa e assombro, inclinou-se sobre o espelho e enfastiou-se do vulto que lhe surgiu. Que ser diferente, que estranha esta lhe aparecia assim sem pedir. O gotejar da água, pelas costas, enraizava os trilhos do calafrio. O contacto directo da queda desnuda, avivava-a uma vez mais, para o afazer da realidade. Ao reconhecer os verdes olhos, malogrados da insónia por que passara, autorizou-se mover, sair além do resistir, pois já chegava tarde. Deteve-se ainda, a observar o reflexo do corpo – as suas feições sentiam-se rosadas, dos vestígios da lacuna última, que lhe carimbava o final da idade jovem e a marcava, adulta.
(fim do segundo capítulo)