terça-feira, 14 de abril de 2009





III

Os labirintos do desígnio…


-----Tornava a casa por altura do fim da Quaresma, recebida com abraços de saudade, apertos dos progenitores que sentiram o vazio do voo da sua infanta.
– Tens de voltar que a tua mãe não me deixa em paz com tantas lamúrias.
– Vês que engraçadinho, quem é que passa a vida a dizer para lhe ligar, quem é?
– Isso é quando reparo que já andas meia nas nuvens, a olhar o horizonte, perdida nos suspiros…
– Tu deixa-te estar deixa, da próxima vez que vieres perguntar do que é que estivemos a falar, vais ficar sem resposta.
– Estou mesmo a ver que não estando aqui, isto é só asneiras.
– Nem imaginas. Não podes voltar a deixar passar tanto tempo entre vir a casa. Está tudo tão vazio. Às vezes até ligo a música no teu quarto enquanto estou a tratar das coisas. Ao menos é meia companhia ao engano.
– Eu é que me devia estar a queixar, de morar numa casa sozinha, longe de todos.
– Mas isso é porque queres.
– Também só paro lá para dormir.
– Ai é? O que é que andas a fazer o tempo todo?
– Coisas.
– Eu digo-te as coisas.
– Oh! É sempre a mesma rotina. As pessoas com quem trabalho até são interessantes, só que nada de extraordinário. E depois não tem ninguém da minha idade, não dá para fazer nada. Acho que vão aceitar mais estagiários, agora para o próximo mês, pode ser que melhore um bocado.
– Estive com a Ana um dia destes. Ela perguntou por ti. Também já arranjou emprego.
– Ainda bem. Vou desfazer as malas e desço já. – Subia as escadas em direcção ao quarto.
– Vós ainda não vos falais?
– Nunca deixamos de falar.
– Tu sabes o que quero dizer.
– Até logo, acho que vou ficar a descansar durante a tarde. E depois levo a minha travesseira comigo.
– Não levas nada. Se queres a travesseira, não tens outro remédio senão vir cá dormir mais vezes.
– Eu levo sem ninguém ver.
– Podes tentar.
– Que duas! Daqui a nada és tu que vais lá p’rá beira dela. Até acho que já aguentaste tempo demais.
– Está calado.
– Já cá não está quem falou. – Envolveu os braços sobre o corpo ternurento de Marie e sorriu, num aconchego enamorado onde as palavras não têm lugar.

-----Tinha feito planos para passar o fim-de-semana em casa, só que foi despertada para a carência de voltar a estar nos imodestos locais que a íntima frequência tornou seus.
– Olá Sofia! – Sim está tudo bem. Queres encontrar-te comigo no bar ao pé da tua casa? – Também dá, eu passo por aí então. – Olha a Luísa mudou de número? Não lhe consigo ligar. – Pergunta-lhe se ela quer ir lá ter. – No máximo às dez e meia, que não me posso demorar. – Está bem, até logo.
-----Abriu divertida o expositor pessoal do seu estilo, percorreu as roupas deixadas desoladas ao desuso dos últimos meses. Colheu um vestido que de imediato abandonou sobre a cama, experimentou um paletó, que a traiu num azedo embaraço de movimentos. Curvou-se ponderada sobre a linha contínua de sapatos que ordenava todo um imodesto compartimento, reluzindo aos seus scarpins favoritos em tons fuscos de carmim, de imediato eleitos a induzir a decisão do que haveria de vestir. Após várias investidas na bastidão de escolhas, frustrou-se de não se sentir convencida por nenhuma das opções. Já não se reconhecia na aparência colorida que aquele guarda-vestidos de uma vida conservava. Saltou para dentro de umas sapatilhas, com o intuito de usar um mês de salário, a reformular a aparência para aspectos de elegância que cortejava das revistas.

-----O tempo estranhamente escureceu mais cedo do que o costume, tornou-se frio, em aragens contínuas de intensos hálitos resolutos. Tomava abrigo entre lojas, demorando-se mais do que tinha planeado, e acabou por se desculpar em cumprimentos de saudades exaltados em observações de lisonja que afagavam a intenção de se terem encontrado.
– O que é que fizeste ao cabelo? Está fantástico!
– Obrigada. E tu, que vestido é esse? Estás Uau! de tirar o fôlego.
– Também não exageres, é só porque saímos à noite. Não estás é habituada a ver-me em tons de preto.
– Pois não. Fico com vontade de te morder, a sério! Greeee.
– Ói que tola. Vamos mas é entrar, senão morremos de frio e a Sofia ainda nos bate.
-----O ambiente estava composto, a música movimentava os corpos ao longo dos bancos circulares. Sentaram-se no espaço mais reservado, junto ao palco onde as bandas convidadas costumavam tocar e a amiga as aguardava com um olhar reprovador de impaciência.
– Se soubesse que ia ser assim, só aparecia aqui amanhã.
– A culpa foi minha, ainda fui às compras e lá se foi a noção das horas.
– Ao menos valeu a pena, tu estás linda. Só tens de tirar o paletó, dar mais volume ao cabelo, assim, perfeito.
– Hoje tive uma vontade imensa, de finalmente me vestir como realmente gosto.
– E de certeza que não teve nada a ver com o facto de o Paulo tocar daqui a uns minutos?
– Não fazia a mínima ideia. Como é que sabes?
– Estavam ali sentados ainda à bocadinho. Agora acho que estão lá em cima.
– Não me interessa. Também não vou ficar muito tempo. – Uma amarula, pode ser?
– Tu, a tomar algo com álcool? Não acredito.
– É só um licor. Nada demais. E um p’rá Sofia, é a minha prenda por já estar a trabalhar.
-----Luísa era a mais comedida das três. De olhar dócil, estatura média, tinham feito a primária juntas. Procurava ingressar no ensino, enviando currículos para todos os locais onde existisse possibilidade de ficar. A Sofia acompanhava em altura o salto de Inês e contrastava pelos seus cabelos loiros, compostos melodicamente num enlaçar mandarim que desperta os hábitos ao oriente. – A banda era apresentada. Iam tocar a primeira música, só instrumental, ele ainda não subia ao palco. Apareceu descendo as escadas, com o braço a intrigar levemente o realce deslizante que uma Ana notoriamente feliz exibia sem rubor. – Sentiu uma aversão inata que a fez sorver de um trago o cálice que se mantinha em repouso. Felizmente sentaram-se de onde não invadiam o espaço de conforto, e permitiam o seu refúgio.
– Eu não vou beber o meu assim. É que nem penses.
– Já viste quem é que está ali? Como é que as coisas andam?
– Já nem penso nisso.
– Esperas mesmo que eu acredite?
-----Estranhamente percebia que se alastrava uma sensação indomável de embaraço. A música iniciava com os olhares a voltarem-se para a agora tão desgostosa escolha do local onde sentar. Tinha conseguido libertar-se alguns dias, de sofrer a constante lembrança da relação ter terminado. E agora tudo se inflama, num propósito algo insalubre, que a deixava com um sabor amargo de ter pegado no telefone.
– Estás a ouvir?! Quero que me dediques uma canção.
-----A sua atenção tinha-se prendido no desarme desnudo da sedutora desarmonia selvagem dos seus cabelos, e no corte arrojado do desvestido nas suas costas. Estava de uma distinção extraordinária, debruçada sobre os cotovelos num requinte de à-vontade que lhe era tão gracioso. O alternar escurecer das luzes, encobria o atraente fluir acento perfeito do vestido velado pelas linhas intuitivas do esbelto corpo. – Ao observar o recolhimento do seu olhar, Ana seguiu-o, apercebendo-se da presença do princípio, que a distanciava a uma posição de desconforto. Volveu-lhe a face, fingindo não ter notado a súbita dissonância que se abateu na intensidade do ar. – Uma música dedicada a mim. – E beijou-o efusivamente.
– Assim vou fazer com que todos se voltem para ti.
– Não me importo.
– Hoje nem me apetece cantar.
– Isso é porque ainda não estás motivado? Queres ver como suscito já a inspiração?
– Não é preciso.
-----Talvez não fosse, mas não podia ficar indiferente, e usava de todos os encantos para o enlevar à sua presença. Ao volver-se um pouco no assento, Inês prendeu-se num reflexo atento, ainda tão devastador, de o ver amar outra pessoa.
– Podia trazer mais uma bebida?
– Acho que aqueles dois estão a olhar para aqui.
– Quem? (Pensava que se tinham apercebido da sua inquietação).
– Por detrás da Luísa.
– Não estão nada. Estão é a olhar p’ró palco.
– Estou-te a dizer, estão sempre a fazer comentários. Vou sorrir a ver a reacção.
– Ò não comeces. Hoje não.
– Vai ser divertido. Vais ver. Tem de valer a pena teres vindo de vestido. Olha está a falar com o empregado e a vir p’ra aqui. Ainda por cima são bonitos.
– Olá! Posso oferecer-te uma bebida?
– Ela aceita. – Inês estendeu um olhar reprovador, que só motivou Sofia a aliciar que lhes fizessem companhia.
-----Acabou bebendo o seu descontentamento, dando o uso pretendido, aos costumes exigidos da adulação nocturna. Iniciava-se a segunda parte, já com o quarteto completo. Ele sabia-a ali e demoraram-se num retraído momento de intimidade.
– Chamo-me Nuno.
– Sou a Catarina. – (Não resistiu a esboçar um sorriso malicioso). Falava-lhe de modo próximo, para disfarçar o embaraço de o ter ali tão perto. Cedia-lhe o contacto do dorso, num leve encosto ao seu peito, fingindo ouvir as palavras que a música teimava em ofuscar. Deixava-o aproximar-se, nutrindo o alento do efusivo galante, que via recompensada a sua intrepidez.
-----Numa leve hesitação, de que estava a descorar a sensibilidade, verificou se a exigência de namorada ainda era reclamada. Mostrou-se resoluta, numa perturbação de aguardo.
– Esta melodia é dedicada à Ana!

– Queres sair daqui e ir a outro sítio?
– Para onde?
– Podes escolher. Desde que não esteja este barulho.
-----Levantou-se, dirigindo-se determinada à saída. No tempo em que estiveram no interior do bar, tinha-se instalado um temporal. Corriam enxurradas pelos passeios, que ao sair encharcaram o carmim desolado de uma Inês num expressivo descontentamento, e a chuva numa hábil precisão, investiu sobre as roupas, frustrando qualquer hipótese de se refugiarem a tempo.
– Fogo! Parece de propósito.
– Ficaste com os pés todos molhados.
– Não acredito nisto. Ainda por cima tenho o carro longe.
– Se quiseres eu moro mesmo aqui por cima. Podemos entrar que arranjo-te algo para vestires.
-----Pela primeira vez observou-o com atenção. Estava ensopada. – Ele até parece simpático. – Achava-se um pouco absorvida por ter tomado aqueles licores, mas não queria ficar constipada.
– Consegues emprestar-me umas sapatilhas?
– Claro que sim. Abriga-te no meu casaco até ali à entrada.
-----Sentiu um caloroso aconchego, na proximidade dos corpos molhados. Ao subir o lance de escadas, apercebeu-se estranhamente animada, por toda a situação. Entrou no pequeno apartamento de duas divisões, identificou um sofá aberto, onde provavelmente dormia, e caixas alinhadas compondo móveis. O espaço desenhava-se sem os ornamentos de uma casa com memórias, mas tinha uma simplicidade jovem, de modernidade sobre os cd’s dispostos ao balcão de tonalidades primárias, e um vaso de flores estranhamente deslocado à janela.
– Ainda só moro aqui à um mês. Quando acabar de mudar as coisas todas é que me preocupo em dar alguma ordem, se bem que este estado caótico parecesse mais comigo.
– Estás a viver sozinho?
– Sim. Arranjei trabalho aqui perto.
– Eu também comecei agora a morar sozinha.
– Tem alturas que se morre de tédio.
– Pois é.
-----Sobre uma pilha de livros, reconheceu marcado, um dos seus escritores favoritos. – Camus?
– “O exílio e o reino.” Tenho outros, numa dessas caixas ainda fechadas, só que não tenho tempo. Já o estou a tentar acabar quase à quinze dias.
– Adorei “o estrangeiro.”
– Então vai ser o próximo que eu vou ler. – Ambos esboçaram um sorriso.
– Queres beber algo quente?
– Obrigada, mas não é preciso.
– Podes secar-te a essa manta. Estás gelada. – Tocou-lhe o rosto, num gesto meigo.
– Não muito. – Encontrou-lhe as mãos e acariciou-as, enquanto envolvia os ombros de acolhimento. Permaneceu prendido no seu olhar, aguardando um consentimento, um corresponder ao anseio que o investia. Aproximou-se dos seus lábios, beijando-a delicadamente. Ela não se percebeu, e retribuiu o afecto. A encoberto da razão, aquele súbito contacto selvagem, parecia-lhe fazer todo o sentido. A mente flutua imóvel desprendendo-se da realidade. O roçar dos corpos envolvidos na volúpia, excitavam ao inato conforto, e a lembrança do frio, esvaeceu-se no decair das alças, no desprender do vestido húmido, que extinguia o último gesto relutante. Enlevada no ímpeto de um êxtase que lhe invadia todos os poros, libertavam-se das vestes, imersas em hormonas primitivas, instigantes, agentes de vontade própria. Sabia-se a caminhar longe do resguardo que mantinha em todas as relações, mas investida nos sentimentos incandescentes que a dominaram ao longo da noite, deixava-se transbordar de inconsciência, sucumbia aos desígnios da intempérie, ao ofegar do vento, ao esgotar dos motivos para os contrariar. Eleva-a ao colo, com os braços envoltos na segurança, entregue livremente ao feitiço do momento. Trocavam suspiros enquanto avançava pelos embaraços da divisão. Cedeu-a gentilmente ao leito, cobrindo os corpos com o lençol, num acto instintivo vedado de intimidade.

-----A hora ia longa, o tempo bravio cedeu lugar ao transpirar sereno, à quietude da noite, ao clarear da Lua sobre os movimentos subtis que Inês fazia, com o cuidado de não o despertar. Envolveu-se num lençol a descoberto, a delinear a silhueta latente, absorvida num estranho acto de pudor. Observa-o dormindo, ignorando o que seria de esperar deste momento.
-----Ter-se ali sozinha, no escuro tardio, sentia um amargo de consciência, tinha acabado de agir num impulso, contrariando toda a educação que lhe tinha sido dada, transgredido as regras pelas quais se separava das outras mulheres, de que ela não era assim. Moveu-se para a extremidade da cama, pousando os pés nas roupas já quase secas dispersas pelo chão. Colocou as mãos no rosto numa atitude meditativa, de costas voltadas para ele, discursava numa voz interior, envolta em embaraços dúbios do que estava a sentir. – Nem sequer o conheço, nem ele sabe quem eu sou, nem qual é o meu nome. O melhor é sair, sem o acordar. – Observou-o, sereno, provavelmente alheio a este tipo de pensamentos, deveria ser normal para ele. Removeu cuidadosamente o lençol sem o acordar, levantou-se, procurando não fazer barulho. O lençol cedia espaço ao vestir cuidado da lingerie, numa intimidade que agora não parecia fazer grande diferença. O calçado teria de ser mesmo assim, frio húmido, não interessava, estaria em casa, não tardava nada.
-----Parou um instante, decidindo-se se deixava um papel escrito, no pequeno bloco à saída. Olha-o uma vez mais, sem decisão do que fazer. O melhor seria ficar assim. Não foi algo com muita importância, de certeza que não era esperado nenhuma imposição,, tinha acontecido,, pousou a caneta e saiu, fechando suavemente a porta.
-----Apoiou-se do corrimão, na descida incerta, respirava ofegante e as pernas pareciam querer ceder a uma vontade de parar, talvez voltar atrás, mas avançava, e um passo mais aumentava a distância, que a desprendia do momento, a deixava lúcida para reflectir, para perceber, nas ruas purgadas pela enxurrada, onde a iluminação pública adquiria a estranha sensação de um orvalho matinal em plena madrugada.
-----Parecia tudo tão irreal. O modo como aconteceu. Tudo tão esquisito, num momento era a Inês de sempre, livre de malícia, sem ninguém com motivos para a repreender, e agora parece uma folha completamente diferente de um mesmo livro. Rasgada, dobrada, levemente escurecida do timbre de um uso displicente. Que horror, sentia-se mal. Triste, com dúvidas a assombrar-lhe o caminhar. Sucedeu-se tudo tão depressa. Ela podia ter dito que não. Porque é que deixou as coisas acontecerem? Não tem lógica nenhuma. Ela não é assim, ela não era assim até ao momento em que as coisas aconteceram. Gostava de si e da sua moral. E agora é toda uma maneira de pensar que está manchada. Agora vislumbra a reprovação sobre si. Agora quando vir alguém a agir do mesmo modo, não tem refúgio para onde se virar. E falava para ela própria, a tentar diminuir a importância do acontecido – não é nada de extraordinário, todas as pessoas são diferentes, aconteceu comigo, se tivesse acontecido com alguém que tivesse tido uma educação diferente eu nem estaria a pensar nisto. Mas então porque é que me parece tudo tão errado? Porque é que subi, e deixei as coisas acontecer? O Paulo não é desculpa para nada disto. A partir de agora é tudo tão diferente não tenho desculpas para nada. Eu sou diferente, já não sou a mesma, e não sei o que pensar. Porque é que tem de ser tudo tão difícil? Porquê? Estás a ouvir? Porque é que as coisas não podem simplesmente acontecer e serem coisas boas? Porquê? É isto que tu queres para mim? É isto que eu vou esperar o tempo todo? É isto… (fala para cima para o mundo para qualquer lado) Eu estou cansada, e a culpa é tua. Já era hora de acontecerem coisas boas. Acho que já fiz a minha parte, não sei que mais posso fazer. Estou cansada, estou farta, estou cheia de não ter ninguém a ouvir.
– Nós estamos a ouvir, estamos sempre a ouvir amada musa. Se soubesses que nos é interdito o teu desígnio! Não sabemos o que te espera, não sabemos as razões.
-----Entrou no carro, bateu a porta, pousou a mala, libertou um sôfrego lamento de irritação, colocou a cabeça sobre o volante e começou a bater-lhe, primeiro com pequenas pancadas e depois intensamente, como se libertasse toda a fúria de ter feito o que fez, sem nunca o ter imaginado, sem nunca ter querido que acontecesse. A comoção levou a melhor e soluçava em pequenas lágrimas a irritação e frustração – Porquê, porquê, porquê? Não tem lógica nenhuma as coisas acontecerem assim. Eu não tinha planeado nada disto. Eu ia viver apaixonada e tudo estava bem. Eu agora ia deixar de crescer, eu estava quase a chegar ao destino que sempre esteve reservado para mim. Era só o que eu queria. Era tudo tão certo. E agora não tenho nada, NADA! Coisa nenhuma. O que é que eu vou fazer? Encontrar outra pessoa qualquer, como hoje, como se qualquer um servisse? Como se não existisse lógica nenhuma na equação que andei até agora a viver?
– Se soubesses como o teu sofrimento abala as fundações do nosso progredir, tu és uma princesa, e todos nós somos teus súbditos, se soubesses como todo o teu reino sofre por ti, se soubesses como é lacerante o constante te ver caminhar o desalento da estrada da incerteza e amargura. Se soubesses o quanto nos custa não poder raiar o sol por ti, servir-te carícias a cada tristeza no teu dia, apertos de carinho para te saberes amada.
– Dei o meu corpo, como se não fosse nada. Só por uma libertação física, e tudo culpa tua. Estás a ouvir? Culpa tua! Não sei porque é que isto tinha de acontecer. Agora não posso voltar atrás. E nem sei se quero voltar atrás. Foi tudo tão… não sei, nem sei se estou arrependida. Estou? Não sei. Já não sei de nada.
– Nós não sabemos, nós também não sabemos porque é que as coisas têm de acontecer como acontecem. Mas parece que é esta força que é maior que tudo, que impulsiona todos os movimentos e está escrita numa língua a que não nos foi dado o acesso a compreender. Estamos aqui para te acompanhar, estamos aqui quando o desgosto cessa, quando deixas de sentir a mágoa e o sufoco. Somos nós quem te ampara a solidão, quem reserva a existência para te acolher. Se soubesses, como todas as tuas dores nos doem também. Como todos os teus momentos felizes foram também os nossos momentos felizes. Não viste a chuva que caiu por ti? Não viste como quase nos diluímos em lágrimas pela tua angústia?

-----Ligou o motor do carro, suspirou fundo, e dirigiu-se a casa. Tinha três chamadas perdidas no telemóvel, já sabia que pelo menos uma, era a perguntar se estava tudo bem. – Sim eu estou já a chegar. O que é que isso interessa agora? Afinal eu estou sempre sozinha a semana toda, não vejo porque é que tenho agora de me preocupar se chego mais ou menos tarde. – Estava rebelde, tudo lhe parecia em alvoroço. Tinha-lhe o sabor na boca. A investir-lhe a mente de estranhos sentimentos. Uma sensação de prazer físico, parecia percorrer-lhe todo o corpo, que divergia da sua mente que queria contrair o sucedido. Estranhamente já não se achava cansada e saturada dos dias, estava extática de adrenalina, na noite tardia estava mais acordada do que nos últimos tempos todos juntos. O contraditório mal-estar que a invadia, não era por se sentir terrivelmente arrependida, sabia que não o devia ter feito, mas estava estranhamente mais leve, menos pensativa. Era uma sensação estranha, onde coisas parecem já não ter tanta importância quanto pareciam ter.
– Estais a ouvir? Estais a ver bem o que a nossa musa pensa? Como pudemos deixar isto acontecer?
– Não se pode fazer nada.
– Como assim nada? Não pode ser. Estou a perder aragem estou a diminuir, temo deixar de ter validade no seu destino. Temo ver o lado lunar sombrio a ocupar o lugar que aquecemos durante todos estes anos de pureza, de cândida melodia.
– Não se pode impedir as folhas de cair. Não se pode cessar a passagem do tempo, o fluir das nascentes, demover o curso dos dédalos, que mil anos de histórias foram calcando para o que está a acontecer.
– Mas não é justo. Não conseguis ver? Não vos apercebeis como tudo isto está errado? Como alguém andou a brincar displicentemente com as teias da narrativa para que o desenrolar fosse este a que estamos a assistir?
– São tudo enredos onde não podemos fazer nada. Só nos resta aguardar. Só nos resta proteger, acolher. Esperar a permissão chegar. Para se delinear outro caminho, para que possamos cruzar percursos que a levem à felicidade que sempre quis.
– Longa demora, tecida nos dédalos dos despojos de uma jovem vida, que teima em não se definir.

-----O carro persistia em não aquecer, dez minutos de viagem foram o suficiente para clarear a razão. – Quinze minutos para as três, e tudo apagado. – No estacionar, pareceu-lhe que o abrir do portão de casa, nunca fez tanto barulho como naquele momento. Cumpria sempre o chegar antes da passagem do dia, que toda a vida lhe fora estipulado. Se bem que agora, não sabia quais eram as regras. E não estava com vontade nenhuma de encontrar uma desculpa que ofuscasse a repreensão.
-----O silêncio habitava as sombras das luzes de presença ao longo do corredor. Com o calçado na mão, recolheu-se pensativa sobre a cama. Sentia um extasiar de contradições ateadas na sensação de desconforto do vestido colado pelo suor do corpo.
-----Levantou-se bruscamente, numa luta consigo mesma por se libertar rapidamente das roupas, lançadas ao cesto num áspero ressentimento, pelo sucesso obtido. Passou rapidamente o chuveiro, emudecimento pela proximidade à esponja que depurava a transpiração suada do corpo. Enquanto suavizava os cabelos, deixou-se absorver sentando-se, suspensa num olhar fixo sobre o ralo que acolhia um fluir triste, um encosto expirante da cabeça nos joelhos trémulos de abatimento, recolhidos num refúgio solitário, acabando por acolher a libertação da emoção, um tímido soluçar, que traduziu o frágil estado interior, até então turvado pela agitação que levou ao desenlace do seu dia.
-----Ao deitar-se, reparou que o telemóvel, ainda aguardava impaciente por atenção. Não quis responder às chamadas perdidas das amigas, mas tinha palavras escritas, um envelope cujo remetente era ele. Fez um compasso de espera, como se a tentar antever o que estava escrito sem abrir a mensagem. – “Gostei de te voltar a ver, foi pena teres ido embora. Sim eu sei, aquela dedicatória não foi muito feliz. Se ficares por cá mais uns dias, podemos marcar algo juntos. Diz qualquer coisa.” – O que é que ele quer agora?! Pensa mesmo que eu sou estúpida?! E manda-me assim esta mensagem. Até parece que não está com a Ana. Não estranhava nada que andasse com dúvidas, agora que me libertei dele, só me apetece dizer para me deixar em paz, “roubaste dois anos da minha vida, a única maneira de me compensares, é lembrares-te sempre que não te quero mais na minha vida.” Como se eu agora fosse simplesmente deixar acontecer de voltarmos a estar juntos, como se nada tivesse acontecido. Se soubesses como já não estou presa a ti. Cresci e já não te deixo influenciar os meus sentidos, já não estou presa, já não vivo em função ti. Já não me pareces tão perfeito, és mesmo como os outros todos. Não, mas não mesmo. É que nem pensar. Nem mereces resposta.